
João Gilberto. 1931-ETERNIDADE
Conheci o João Gilberto em 1953 quando os Garotos da Lua, grupo vocal liderado pelo Lúcio Alves, atuaram no Clube da Chave, no Rio de Janeiro. Não sei o que me chamou a atenção para aquele rapaz, com seu violão, colocado no extremo direito naquele grupo de cinco artistas.
Sei que conversámos, mas ao contrário do que acontece na maioria dos encontros casuais, nasceu uma ligação de afinidade espiritual que prescinde de contactos. O que ele me deu e eu possivelmente ofereci a ele é intemporal e indelével.
Não terei saudades do João, porque ele está comigo há 60 anos. O nosso convívio acidental em Buenos Aires, em Nova Iorque e no Algarve está registado em vários escritos meus e é inesquecível, não só pelo conteúdo mas também pela forma. A sua idiossincrasia tinha um lado absolutamente cómico. Há cerca de 30 anos, João decidiu que queria fazer um espetáculo na Quinta do Lago e, apesar de eu explicar que não tinha condições apropriadas para ele dar um concerto, ele avisou que no dia tal chegava à Quinta do Lago e três dias depois fazia o concerto. Com José Manuel Trigo, improvisámos um cenário e um espaço para aproximadamente 200 pessoas, à volta da piscina do restaurante Pérgula, Casa Velha. Ele chegou uma semana antes com a sua pequena entourage, sendo o seu manager ainda mais louco do que ele. Entendi que para a boa ordem do evento não teríamos contacto prévio, devido a conhecer a extravagância e as exigências do João. E, mesmo assim, o manager telefonou a dizer que o João exigia a presença do seu homem do som brasileiro. Neguei liminarmente. No dia do concerto, num sábado, marcado para as dez da noite, o horário ia-se aproximando e não havia sinal do João. Às 10h15 aparece um empregado a dizer que ao telefone do restaurante estava o senhor João Gilberto. Eu fui atender a chamada, já sabendo o que esperar, e digo: “Olá, João” E ele, naquela toada baiana, responde: “Andrezinho, que bom ouvir a sua voz”. E eu digo: “O que é, João?’ E ele diz: “Andrezinho, não posso cantar hoje”. Eu não hesitei e disse-lhe: “João, venha imediatamente”, e bati com o telefone, porque sabia que não havia registos de alguém que tivesse ganho uma discussão com o João. Ele era incrivelmente persuasivo. Dez minutos depois, ele chegou e fez um concerto memorável, a ponto de hoje, domingo, sabendo da morte dele, me ligou uma amiga para recordar aquela noite de há quase 30 anos. Depois do concerto sentámo-nos à meia-noite num banco de pedra na boate Pátio, Quinta do Lago, e conversámos até às quatro da manhã. Foi a última vez que estive com ele.
Talento maior, sensibilidade extrema que o levou ao isolamento. Agora descansa. E, finalmente, o seu legado tão simples e tocante continua presente no mundo e ajuda a aliviar as suas dores.
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